A Ponte do Diabo

Esse curta raro de 1997 mostra o papel de uma ponte muito especial num remoto vilarejo nas montanhas do Quirguistão. A ponte de cordas serve como único elo dos habitantes com o resto do mundo. Pessoas, animais e produtos cruzam o rio numa plataforma que deve ser movida pela força dos braços para atingir a outra margem. Por alguma razão que não sabemos, é chamada pelos locais de “Ponte do Diabo”.

O diretor Temir Birnazarov se perguntava se a ponte conecta ou separa. Questão dialética que, afinal, diz respeito a toda e qualquer ponte. Ele documentou também alguns hábitos dos aldeões, com um olhar afetuoso para crianças e animais. De tão rudimentares que são as práticas no lugar, o filme parece retratar uma realidade bem mais distante no tempo do que há meros 23 anos atrás.

Birnazarov, 55 anos, é um diretor, escritor e produtor quirguiz. Ele começou dirigindo curtas premiados como esse, que ganhou láureas e menções nos festivais de Clermont-Ferrand e Yamagata. Mais tarde, Birnazarov realizou seus primeiros longas, como Belgisiz Marshrut (Rota Desconhecida) e Tunku Kyrsyk (Acidente Noturno), com o qual ganhou o Grande Prêmio no Festival de Cinema da Noite Negra, na Estônia.

Mostar – História de uma ponte

O desejo de ver uma ponte – não sei até onde isso pode me levar.

Na minha viagem aos Balcãs, em 2014, no trajeto entre Sarajevo e Dubrovnik, tomamos um desvio para conhecer a cidade de Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Conhecer a cidade é modo de dizer, pois o que me interessava mesmo era ver a mítica Ponte de Mostar.

Construída no século XVI pelos otomanos, a bela ponte arqueada sobre o Rio Neretva virou símbolo de entendimento entre as várias nacionalidades e religiões presentes na região. Até que a Guerra da Bósnia tornou essa convivência impossível.

Em 1993 a Ponte de Mostar foi duramente bombardeada pelas forças crotas até a completa destruição. Mais que um objetivo estratégico, era o ataque a um alvo cultural e simbólico.

A ponte seria reconstruída dez anos depois e voltou a atrair a admiração do mundo. Hoje é uma atração turística que reúne a beleza da construção e do seu entorno aos ecos de uma tragédia histórica.

Este pequeno vídeo resume meu deslumbramento no punhado de horas que passei em Mostar. Pela primeira vez usei materiais de arquivo e uma narração pontual em um dos meus travelogues.

A canção brasileira de Bresson

A Pont Neuf de Paris tem papel de destaque em Quatro Noites de um Sonhador (1971), a versão de Robert Bresson para a novela Noites Brancas, de Dostoievski. O jovem pintor Jacques conhece Marthe quando ela se preparava para cometer suicídio atirando-se da ponte. Pelas três noites seguintes, eles vão se encontrar ali, Jacques vai se apaixonar, mas – como todos sabemos – na derradeira noite Marthe se vai com seu antigo amor.

Compartilho aqui um trecho do filme que tem sabor especial para nós, brasileiros. Jacques e Marthe contemplam da ponte a passagem de um Bateau Mouche onde Marku Ribas (1947-2013) canta ao violão a sua composição Porto Seguro. Na época, Ribas se apresentava na França com o seu Grupo Batuki. Depois faria carreira internacional como músico e foi também dançarino e ator. Em Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, ele fez o papel de Carlos Marighella.

A Pont Neuf, de tantos filmes e tantos amores, nunca ficou tão melancólica como ao som de Marku Ribas. Veja só:

Agradeço a dica de Julio César de Miranda

O experimento Outerborough

Em 1899, um cinegrafista da American Mutoscope & Biograph instalou sua câmera na frente de um trolley que atravessava a Ponte do Brooklyn. Três rolos de 90 pés foram editados para completar a viagem de Manhattan ao Brooklyn. Across the Brooklyn Bridge foi rodado na efêmera bitola de 68mm e, portanto, não era conhecido do público moderno até que o British Film Institute o restaurasse e transferisse para 35mm em 2004.

Numa encomenda do MOMA em 2005, o cineasta experimental Bill Morrison, um apaixonado por found footage, recombinou as imagens do filme para essa extrapolação em tela partida, intitulada Outerborough (algo como “Periferia”). O violinista e compositor Todd Reynolds criou a trilha sonora a partir da montagem de Morrison.

(Texto baseado na apresentação do Vimeo)

Outerborough é um experimento não só de recombinação, mas de compressão, espelhamento e dilatação do percurso vencido pelo veículo. Espaço e tempo tornam-se maleáveis, enquanto a ponte cumpre seu papel de lugar de movimento, passagem e transição.

Agradeço a Bill Morrison a autorização para inserir o vídeo no blog.

Felicidade e morte em “Jules e Jim”

Duas pontes desempenham papéis dramáticos opostos no admirável Jules e Jim, de François Truffaut. A primeira entra em cena aos 13 minutos de filme, quando Catherine (Jeanne Moreau), Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) vivem a plenitude de sua felicidade a três. Catherine, disfarçada de homem para uma brincadeira anterior, propõe que os três disputem uma corrida ao longo da ponte – na verdade, a passarela de Valmy sobre a via férrea, na localidade de Charenton-le-Pont, arredores de Paris.

A cena exala uma alegria infantil e uma cumplicidade que vai se concretizar na relação amorosa a três. Dali saiu a imagem mais divulgada do filme, a foto que abre esse post. Reinout van Schie, no blog One Shot, destacou a conexão entre as roupas listradas dos personagens e as grades da passarela, o que gera a percepção de harmonia e uníssono. Germaine Greer, por sua vez, enfatizou a tomada que corre em paralelo ao rosto de Catherine, envolvendo o espectador no prazer da brincadeira.

https://vimeo.com/139370037

Abaixo, duas fotos da filmagem da cena, comandada pelo fotógrafo Raoul Coutard.

E aqui um vídeo que gravei atravessando a instalação montada na exposição Truffaut, no MIS-SP. As imagens da corrida se propagam numa sucessão de cortinas que leva o visitante inevitavelmente ao encontro da luz do projetor. O som reproduz em looping a respiração ofegante de Jeanne Moreau.

https://vimeo.com/139397587

Esta cena já foi muito citada e copiada em diversos filmes de várias latitudes. Atualmente, está em cartaz em Um Filme Francês, de Cavi Borges, reencenada na passarela do MAM-RJ.

A segunda ponte de Jules e Jim aparece numa das últimas sequências do filme. Catherine chama Jim para contar-lhe alguma coisa dentro do carro, pede a Jules que os observe e dirige decididamente para a extremidade de uma ponte interrompida. O suicídio e a morte de um dos companheiros, sob a assistência do outro, configura um final surpreendentemente amargo para um filme que parecia festejar a vida e a liberdade no amor.

https://vimeo.com/139370036

A velha ponte onde foi filmada esta cena fica em Limay-Mantes-la-Jolie, também nas cercanias de Paris. Ei-la segmentada até hoje:

Uma curiosidade a mais: em ambas as sequências Truffaut inseriu o traveling que acompanha lateralmente o deslocamento sobre o rosto de Catherine, numa espécie de rima visual, uma ponte entre as duas pontes.

Art de Maillart

Heinz Emigholz, o cineasta alemão especializado em filmes sobre arquitetura, dedicou um curta às pontes construídas pelo engenheiro suíço Robert Maillart (1872-1940). As Pontes de Maillart foi exibido na recente mostra de Emigholz no Instituto Moreira Salles. Todas as fotos desse post são frames do filme.

Conforme o estilo predominante nos filmes do diretor, este curta também se compõe de uma sucessão de planos fixos, pouco diferindo de um slide show com som ambiente. O objetivo é destacar os detalhes arquitetônicos que definem a personalidade das construções e a relação das pontes com a paisagem circundante.

No caso das pontes de Maillart, construídas em concreto armado nos anos 1930 e 40, vistas hoje elas parecem comuns, funcionais, isoladas no meio do mato ou em rodovias áridas do interior da Suíça. Mas a seleção de enquadramentos de Emigholz chama atenção para os pormenores inovadores, como os arcos alongados, os pilares em forma de cogumelo e a distribuição elegante das massas de concreto.

O trecho abaixo, o único disponível no Youtube, não mostra exatamente uma ponte, mas a laje de sustentação de uma estação de tratamento de água com pilares em cogumelo.

 

Pontes que partiram

A destruição de uma ponte é objetivo estratégico em conflitos quando se trata de isolar o inimigo. No cinema, é mote para explosões espetaculares e um show de miniaturas. Esse clipe é bastante popular na internet. Compila cenas de pontes destruídas em 14 filmes, reunidas por Harry Hanrahan.

Lista dos filmes (títulos originais em inglês):
00:06 – A Fistful of Dynamite (aka ‘Duck, You Sucker!’) (1971)
00:26 – The Bridge on the River Kwai (1957)
00:32 – The Bridges at Toko-Ri (1954)
00:33 – The Bridge on the River Kwai (“Madness”) (1957)
00:35 – True Lies (1994)
00:43 – The Good, the Bad and the Ugly (1966)
00:45 – Hogan’s Heroes (1965)
00:47 – The Wild Bunch (1969)
00:52 – Monsters vs Aliens (2009)
00:56 – The Core (2003)
00:58 – Tropic Thunder (2008)
01:06 – Mission: Impossible III (2006)
01:11 – I Am Legend (2007)
01:18 – A Bridge Too Far (1977)
01:21 – The Long Kiss Goodnight (1996)

Musica:
Tchaikovsky – Abertura 1812, Op. 49
(Bernard Haitink, Royal Concertgebouw Orchestra)

Fonte: blog É Peixe

A maravilha de aço de Calcutá

A Ponte Howrah, construída entre 1938 e 1943, é um dos símbolos de Calcutá. Liga esta grande metrópole indiana à cidade vizinha de Howrah, cruzando sobre o Rio Hooghly. Passam por ela diariamente cerca de 100 mil veículos e 150 mil pedestres. É uma ponte suspensa ou flutuante, com extensão total de 705 metros. O vão central mede 457 metros sem nenhum apoio sobre o leito do rio. A obra é admirada por não recorrer a parafusos nem porcas. A estrutura de 26.500 toneladas de aço é sustentada apenas por rebites.

A construção já apareceu com destaque em dezenas de filmes indianos, um dos quais é o noir intitulado justamente Howrah Bridge, de  Shakti Samanta (1958). Está também em filmes estrangeiros rodados na Índia, como Gandhi, de Richard Attenborough, e Cidade da Esperança, de Roland Joffé.

Mas a maior atuação cinematográfica da Ponte Howrah, para mim particularmente, é nesse registro que fiz dela em 2005, durante uma viagem pela Índia. Filmei-a de todos os ângulos que pude, inclusive passando por baixo numa barca. Nesse pequeno vídeo que editei agora, estão a ponte e seu entorno nas duas margens, com sua fauna humana incomparável e o buliçoso mercado de flores religiosas que fica na margem de Calcutá.

Não adicionei nenhuma música, já que nada ficaria melhor que o som ambiente, com o buzinaço permanente do tráfego, o ruído dos barcos e a algaravia sonora dos bengaleses.

Para melhorar um pouco a qualidade da imagem, acione o HD na barra inferior do Vimeo.

Mecânica e movimento

Joris Ivens fez o primeiro filme importante inteiramente dedicado a uma ponte na história do cinema. Em 1928, ele começava carreira, vindo da fotografia, e procurava um tema que lhe permitisse explorar padrões de movimento. Era um tempo de fascinação pela mecânica e pela velocidade, o que transparece em cada sequência de A Ponte. Por sugestão de um engenheiro, Ivens decidiu documentar as atividades em torno da recém-construída ponte móvel sobre o rio Maas, em Roterdã.

Uma autorização especial da ferrovia lhe permitiu escalar as diversas partes da ponte e tirar vantagem dos pontos de vista mais altos. Sua câmera Kinamo portátil ora está dentro de um trem cruzando a ponte, ora está subindo ou descendo junto com o pontilhão que, quando suspenso, abre passagem para as embarcações de maior porte. A narrativa é simples: os trens cruzam a ponte velozmente enquanto os navios esperam no rio. Um trem reduz sua velocidade até parar diante do sinal fechado. O pontilhão se ergue e os navios passam. Em seguida, o pontilhão retorna ao seu nível e o trem retoma seu ritmo através da ponte.

Ivens antecipa a reflexividade de O Homem com a Câmera ao incluir um plano dele próprio com sua Kinamo logo no início. É uma senha para o seu interesse pelas similitudes entre a passagem da película no obturador e a passagem das imagens pelos vãos das ferragens. O dinâmico grafismo visual se soma aos reflexos das águas, ao jogo de sombras e aos detalhes de roldanas, engates, alavancas, etc. O cinema, o trem e a ponte como fenômenos da mecânica de precisão a serviço da mobilidade.

Em seu livro sobre Ivens, A. Zalman conta que a montagem foi feita com base num jogo de cartões que o cineasta criou para tomar decisões sem precisar manipular a película. Sua mulher, a fotógrafa Germaine Krull, o acompanhou nas filmagens e publicou muitas fotos no seu livro Metal (à esquerda).